Essas não são perguntas que cabem somente ao mundo dos esportes, principalmente, em tempos de pandemia
Por Daniela de Oliveira
“E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?…”
(Carlos Drummond de Andrade)
A prova acabou, o ciclo de treinamentos fechou. A próxima meta está longe (se é que já existe). No momento, não sabemos nem se e como vamos continuar. E agora José? Como começar um novo ciclo? Como viver uma transição?
Essas não são perguntas que cabem somente ao mundo dos esportes, principalmente, em tempos de pandemia. Entretanto, vamos focar neste artigo para nosso pedaço do mundo esportivo.
Todos nós já vivemos o fim de um ciclo de treinamento, sendo o resultado aquele que você tinha esperado ou não. Recomeçar os treinos pesados, a alimentação controlada e a disciplina da rotina exige um baita de um esforço. Manter essa rotina por mais uma temporada exige mais esforço ainda. Sempre temos aqueles atletas que recomeçam muito fácil, mas têm grande dificuldade de manter a vida nos eixos.
Bem-vindos à dificuldade inerentemente humana de lidar com transições. A verdade é que, para que algo novo comece, aquilo que era antigo precisa terminar. Precisamos passar pela morte para que algo novo possa nascer.
Entretanto, nossa tendência é achar que, depois de terminada uma competição, vamos refazer e repetir aquilo que sempre fizemos. Encontramos o tédio e a desmotivação.
Na Jornada do Herói, Joseph Campbell esclarece que após responder o chamado à aventura, cruzar um limiar dos limites e ser testado, o herói deve morrer para renascer e voltar ao mundo natural com novos conhecimentos e aprendizados. Se não fazemos isso com nossa prática esportiva, fica difícil continuar. E como morrer e renascer?
Começando a morrer: tire férias. Depois do fim de qualquer ciclo merecemos comemorar ou lamber nossas feridas. Tire um tempo para fazer atividades de movimento completamente diferentes de sua prática. Se você é triatleta, experimente dançar, fazer yoga, Tai Chi Chuan. Dê preferência para aquelas que também tragam um ritmo diferente daquele que é seu automático.
William Blake dizia que o homem não tem um corpo distinto de sua alma. Pensando nisso, veja como você está construindo seu templo. Você o conhece? Ou acredita que você é uma máquina que responde à dicotomia comando-resposta, ou seja, você manda e ele obedece? Nossas estruturas e nossas atitudes determinam o destino de nossa experiência. Nossas atitudes são ações que fazemos sobre nós mesmos e a maneira como fazemos nossas ações no mundo seguem esse padrão. Conhecer nossas atitudes e estar atento a como fazemos o que fazemos podem fazer parte de um caminho que nos permite participar das transições em nossa vida, sem nos tornarmos reféns desse processo. Tenha o processo de transição nas suas mãos e não se torne refém de seus humores.
Deixe-me explicar melhor: a vida é uma série de múltiplas transições. Inúmeras possibilidades (até a nossa morte) se apresentam para que possamos aprender e reorganizar a maneira como nos relacionamos com o mundo que nos cerca. Assim, é importante criarmos variações em nossas respostas. Na maioria das vezes respondemos aos eventos da vida sempre da mesma maneira, ou seja, assumimos a mesma atitude de luta, fuga ou paralisia. Criar uma pequena variação abre a possibilidade de sermos mais criativos, de encontrar o novo a cada movimento, experimentar o diferente na mesmice do dia-a-dia. Isso traz a inovação que constrói a motivação.
Podemos concluir que a transição para o novo ciclo requer vivenciar o luto. Voltando à Carlos Drummond:
“Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?”
O lugar do novo começo é solitário e devemos olhar para nossas próprias sombras. Rever nossas atitudes, nossos modos de ser e separar aquilo que já não nos serve mais. Segundo a psiquiatra, suíça-americana, Elizabeth Ross, as pessoas passam por 5 (cinco) fases do luto: surpresa, raiva, negociação (barganha), depressão/racionalização e aceitação (nem sempre vivenciamos todas elas e nessa ordem).
Apenas vivenciando esse processo de luto que o novo pode florescer e podemos continuar nossa caminhada na vida esportiva com os aprendizados de cada ciclo, bem consolidados e, assim, damos suporte para nossa motivação intrínseca (aquela que está dentro de cada um de nós), abrindo espaço para construção de um sentido para nossa prática. O herói só pode cumprir sua jornada quando existe um sentido maior para toda a sua dedicação. Para ajudar a encontrar esse sentido e voltando à pergunta de Carlos Drummond “José, para onde?”, acrescentaria para você, atleta, a cada começo de ciclo: “José, para que?”.
Daniela de Oliveira é psicóloga e ex-nadadora profissional. danideoliveira.com.br e @danielapanisideoliveira