Competitividade pode ser uma faca de dois gumes; dentro da própria psicologia existem muitos artigos contraditórios sobre o tema
Por Daniela de Oliveira
Certa vez, o ex-presidente Barack Obama, em uma reunião com um grupo de estagiários, deu um conselho de vida: “Quando todos vocês tiverem filhos, é importante deixá-los vencer”. Depois acrescentou a segunda parte com um sorriso: “até eles completarem um ano de idade”, quando você pode começar a ganhar novamente.
O conselho parece interessante para aqueles que vivem no mundo das organizações e no mundo dos esportes. Afinal, aprendemos a competir desde cedo. Grandes atletas contam o quanto eram competitivos desde criança. Inclusive enaltecendo a dificuldade (mau-humor, birras, cara fechada e até inimizades) em aceitar qualquer coisa menos do que o primeiro lugar.
Quando testemunhamos uma criança tentando ganhar em todos os jogos, temos a tendência a incentivar a atitude, acreditando que a vida é competitiva e que ela terá mais chances de ser feliz e bem-sucedida sendo competitiva. Entretanto, aqui vale o conselho de vó (adoro as avozinhas sábias): “nem tudo o que parece, é”.
A competitividade pode ser uma faca de dois gumes. Dentro da própria psicologia existem muitos artigos contraditórios sobre o tema. Várias pesquisas mostram que a competição pode ser tóxica para crianças, promovendo ansiedade, danificando a autoestima e a performance, contribuindo para o desinteresse e a desistência de atividades que exijam maior esforço para aprendizagem ou que ganhar não seja garantido.
Uma análise publicada pelo Psychological Bulletin, da Associação Americana de Psicologia, mostra que não existe uma conexão clara entre a competitividade e a performance. Às vezes, ao que parece, a competição melhora o desempenho, mas com a mesma frequência não. A competitividade é uma atitude. Nossas atitudes são padrões neuromusculares que têm uma parte herdada e outra formada em nossas relações. Ou seja, nossas atitudes são como um músculo, cada um de nós herda uma facilidade ou dificuldade em ganhar massa muscular e, como nos usamos (praticamos ou não atividade física, quanto praticamos, qual atividade escolhemos etc.), irá construir uma determinada anatomia. Somos uma soma do que é herdado e do que construímos. Assim também acontece com nossas atitudes.
Portanto, é natural que algumas crianças sejam mais competitivas que outras. Ao mesmo tempo, não é natural e sim cultural que vencer seja tão valorizado. Muitas vezes um sistema familiar valoriza tanto a competição que pode “atropelar” a criança com exigências de vitória sem ao menos perceber.
O que fazer então? Podemos trabalhar com a competitividade de uma maneira saudável. Assim como ensinamos nossos filhos a andar de bicicleta, podemos ensiná-los que a competitividade é apenas uma de suas atitudes e seu uso deve ser feito em alguns momentos. Tentar eliminar a competição não é realista. Entretanto, sua prima-irmã, a cooperação, também nos é um tanto útil. Assim como a compaixão, a gentileza, a satisfação, o medo, a raiva e uma infinita variedade. Podemos ajudar nossas crianças a desenvolverem maneiras variadas de se usarem na vida, para que não fiquem presas a uma única forma de ser. Um único padrão de reação, um modo automático de estar na vida, pode nos trazer sofrimento. Afinal, as situações que a vida nos apresenta são diversas em qualidade e intensidade.
John Tauer, psicólogo, em uma série de estudos analisou crianças entre 9 e 14 anos em relação à competição, cooperação e competição combinada com cooperação. Sua pesquisa mostra que a combinação de competição com cooperação gera maior satisfação e maior performance. Segundo o psicólogo, devemos sempre dar atenção aos sentimentos da criança, para que ela se sinta bem ao praticar um esporte. Mas, ainda mais importante, é que tenha uma visão realista de mundo. Ou seja, deixar a criança ganhar todas as vezes pode fazê-la se sentir bem inicialmente, mas depois de um tempo ela vai perceber que alguma coisa não está no lugar. Além disso, podemos tentar entender o que nossos filhos entendem por ganhar. Qual a importância damos para isso em nossas vidas, seria essa a única maneira de “ser alguém”? Ensinar nossas crianças que elas podem ser valorizadas por outras atitudes e características de personalidade pode ser um grande alívio. Além disso, podemos construir um sistema familiar em que o valor das pessoas não está na medalha ou no resultado, mas no quanto se empenham para resolver um problema.
Podemos olhar para os grandes atletas em sua pós-carreira. Aqueles que tiveram sucesso profissional em qualquer outro âmbito e relatam uma vida satisfeita são, na verdade, grandes curiosos para resolver problemas. Ganhar ou perder torna-se secundário diante do desafio de melhorar o próprio tempo, fazer uma série a mais, mesmo com dor, pensar em uma estratégia diferente diante de um imprevisto, conseguir encaixar melhor o nado na primeira passagem da prova, entre outros.
Podemos ensinar aos nossos filhos este outro ângulo. A habilidade de ter referências internas, ao invés de referências externas, é ensinada. Por vezes brinco com minha enteada de seis anos: “consulte seu estômago para saber se ainda tem fome”, é uma maneira de virar a atenção para dentro, ao invés de simplesmente sair engolindo tudo o que vemos pela frente. É também uma estratégia para desenvolver interocepção (habilidade de saber sobre seus próprios processos neuropsíquicos como emoções, desejos e sensações). Assim, desenvolvemos autoconhecimento e a capacidade de nos entender nas relações com o mundo que nos cerca, incluindo a prática esportiva.
Minha avó me ensinou que tudo na vida pode ser bom ou ruim, dependendo da intensidade. “Nem oito, nem oitenta”, ela dizia. Não podemos excluir a competitividade, mas a competitividade excessiva prejudica a vida. Torna-se um problema quando não podemos desfrutar nossa performance e ficamos incomodados quando outros estão indo bem.
A melhor maneira de ensinar nossas crianças a serem saudavelmente competitivas é a nossa própria atitude. Crianças imitam a maneira como os adultos mais próximos estão formando suas relações. Podemos ensiná-los ao nos colocar em situações competitivas de maneiras diferentes, incentivando mais a cooperatividade dentro de casa (afinal, a competitividade já está lá fora no mundo), perdendo de maneira construtiva e cuidando para escolher treinadores que trabalhem focados na performance e não no resultado.
Se seu filho ou atleta já estão com “sangue nos olhos”, ansiosos e “fulminando o adversário”, podemos trabalhar com autocontrole, tentando entender quais os gatilhos da competitividade excessiva e mudando o foco de atenção, inibindo uma reação automática. Algumas técnicas de meditação como o escaneamento corporal, reconhecendo e influenciando os estados de tensão e tônus muscular, podem ajudar. Podemos abrir espaço para o diálogo emocional, sendo mais sensíveis à vida emocional e não apenas aos afazeres. Quando podemos escutar nossas crianças em suas demandas e seus medos, podemos dar um contorno, acolher e desenvolver a autoestima. E, talvez o mais importante: não nos levar tão a sério. Podemos mostrar às nossas crianças que ter seriedade não é o mesmo que ser sério. Podemos dar leveza para as situações de competição, vitórias e derrotas. Lembrando sempre que crianças não vêm com manual de instruções e ser mãe/pai não tem cartilha, precisamos entrar na água e aprender a nadar, mesmo sabendo todas as técnicas e teorias, às vezes funciona, às vezes não. Temos que experimentar e aprender com as experiências.
Daniela de Oliveira é psicóloga e ex-nadadora profissional. www.danideoliveira.com.br e @danielapanisideoliveira