Exercício, um remédio para o câncer

“…seria mesmo o repouso a melhor opção para atenuar a fadiga oncológica, um dos principais efeitos adversos ao tratamento?”

Por Eduardo Figueiredo

A palavra câncer sempre foi um estigma para a população, e no passado muitas pessoas que diagnosticavam essa doença se mantinham ocultas da sociedade. Parte disso partia da associação feita da doença à morte. De fato, no início do século XIX essa doença era vista como uma sentença de morte e na maioria dos casos era verdade, uma vez que, o avanço e inovação nos tratamentos que atualmente conhecemos e são disponibilizados, foram desenvolvidos a partir da década de 70. Ainda na década de 40, Sidney Farber, um médico-patologista especializado em pediatria, triste com a realidade das crianças que desenvolviam leucemias, começou a trabalhar incansavelmente na busca de uma cura para aquela condição que atormentava pais e crianças da época (e até hoje). Ele ficou mundialmente conhecido como o “pai da quimioterapia moderna” por seus experimentos clínicos que começaram a mostrar resultados interessantes. Desde então, foi aberta a corrida para a cura do câncer que atualmente é a área de pesquisa que mais recebe investimento financeiro e, consequentemente, uma das mais disputadas por vagas em laboratórios de pesquisa. Sobre esse tema, sugiro a leitura do livro do Dr. Siddhartha Mukherjee, intitulado, “O imperador de todos os males – uma biografia do câncer”.

Apesar de todo investimento em pesquisa para o tratamento do câncer, ainda hoje muitas pessoas são diagnosticadas e morrem por essa doença. Dados de estimativas de mortalidade global de 2019, mostraram que das 20.4 milhões de mortes que ocorreram prematuramente (entre 30 e 70 anos), três quartos foi devido a doenças não transmissíveis (DNTs), incluindo o câncer. Para cada 10 pessoas que morrem prematuramente de DNTs, 4 morrem de doenças cardiovasculares e 3 de câncer. De fato, dados do GLOBOCAN produzidos pelo IARC (International Agency for Research on Cancer) de incidência e mortalidade de câncer mostraram 19.3 milhões de novos casos e 10 milhões de mortes em 2020 por essa doença em todo o mundo.

A descoberta de milhares de alterações genéticas em diferentes tipos de câncer levou à ideia de que o câncer não é uma única doença, mas um conjunto de muitas doenças diferentes com mecanismos moleculares distintos. Realmente, quando falamos em câncer estamos falando em mais de 100 neoplasias estabelecidas. A esse respeito, Douglas Hanahan e Robert Weinberg publicaram os artigos intitulados, “Hallmarks of Cancer” (2001) e Hallmarks of Cancer: The Next Generation (2011) demonstrando as principais alterações fisiológicas das células tumorais e como essas características, coletivamente, poderiam ditar o desenvolvimento da doença. Apesar de todo o avanço, a cura para o câncer ainda não é uma realidade para boa parte dos pacientes, e diante desse cenário se tornou fundamental a busca de ferramentas preventivas, e até mesmo terapias auxiliares ao tratamento convencional.

O exercício já se mostrou uma excelente estratégia não farmacológica na prevenção do câncer e mais recentemente, estudos vem se concentrando nos efeitos do exercício concomitante ao tratamento e, consequentemente, no controle da doença. Esses estudos vêm tentando identificar os mecanismos pelos quais o exercício exerce seus efeitos, e algumas dessas hipóteses partem do controle e ajuste de alguns desses hallmarks. As respostas para essas perguntas já estão começando a aparecer, porém, assim como na pesquisa em tratamento, a pesquisa em exercício e câncer ainda tem um longo caminho a ser percorrido.

Em 2008 eu diagnostiquei um câncer linfático (Linfoma de Hodgkin) que me fez refletir sobre aspectos da doença e, principalmente, sobre o papel do exercício na doença. De lá para cá foram-se mais de 10 anos de tratamentos entre quimioterapias, radioterapias e até mesmo 2 transplantes de medula óssea, hoje posso dizer por experiência própria que a prática de exercícios durante toda a minha vida e, durante os tratamentos, refletiu na resposta à doença e minha sobrevivência. Sendo assim, estarei contribuindo da minha visão e experiência como um ex-paciente, e agora, um sobrevivente do câncer nesse texto.

Como dito anteriormente, o emergente campo de pesquisa em exercício e câncer vem tentando elucidar os mecanismos dos efeitos positivos da prática de exercício na prevenção, durante o tratamento e pós-tratamento do câncer. Então, vamos a alguns dados e evidências que apoiam os efeitos benéficos do exercício no câncer, e como ele pode impactar no desenvolvimento da doença.

Em 2016 Steven Moore e colaboradores, em um elegante estudo prospectivo observacional com o objetivo de determinar a associação da atividade física na incidência de 26 tipos de câncer reuniu dados de 1.44 milhões de participantes dos EUA e Europa. Os resultados foram significativos, mostrando que indivíduos com níveis elevados de atividade física tiveram reduções no risco de desenvolvimento de 13 tipos de câncer em relação aos indivíduos com níveis baixos de atividade física, ou seja, pessoas que se exercitaram mais, tiveram menores chances de desenvolver câncer. Reforçando os achados de Moore, em 2018 o ACSM (American College of Sports Medicine) reuniu dados de 17 organizações de saúde para recomendações de prevenção e controle do câncer. Os resultados mostraram fortes evidências para um menor risco de desenvolvimento de 7 tipos de câncer, e de forma importante, o exercício melhorou a sobrevida de pacientes após o diagnóstico, mostrando que pacientes com câncer podem ter uma configuração diferente da doença de acordo com os níveis de atividades do indivíduo. Por exemplo, o risco de desenvolvimento de câncer pode ser reduzido com práticas regulares de exercícios de pelo menos 3 a 5 horas por semana, com as mulheres se beneficiando de atividades com intensidades mais elevadas, que são consideradas eficazes na redução do risco de câncer de mama. A taxa de redução em indivíduos com maiores níveis de atividades varia de acordo com o tipo, por exemplo, em câncer de mama há uma variação na redução de 15% a 20%, colorretal 24% e estômago 19%. De forma importante também, dados observacionais indicam que a exposição a exercícios regulares é associada a uma redução da recorrência e morte específica pela doença entre 10% a 50% em algumas formas de câncer. A variação do risco de desenvolvimento da doença com base no tipo de câncer ocorre principalmente porque diferentes tipos e subtipos (p.ex. câncer de mama é classificado em 4 subtipos) de tumores têm sensibilidades variadas ao exercício físico. Um grande exemplo desse tipo de variação ocorre no câncer de mama, aonde mulheres que desenvolvem os subtipos da doença, ER+ (Receptor de Estrogênio positivo), PR+ (Receptor de Progesterona positivo) e HER-2 negativo (receptor 2 do fator de crescimento epidérmico humano) são particularmente sensíveis ao exercício.

Uma coisa que sempre escutava durante os meus tratamentos era, “você precisa descansar”, e realmente isso era o que eu mais queria após uma sessão de quimioterapia. Mas, seria mesmo o repouso a melhor opção para atenuar a fadiga oncológica, um dos principais efeitos adversos ao tratamento? Hoje posso dizer que não. Algumas vezes eu queria ficar somente deitado sem fazer nada (e algumas vezes foi inevitável), mas era com o exercício que me sentia melhor e mais disposto para tarefas do cotidiano, e de fato pesquisas mostram que o exercício físico durante a quimioterapia pode aliviar significativamente a fadiga relacionada ao câncer, por exemplo, evidências mostraram que pacientes oncológicos que participaram de um programa de exercícios três vezes por semana, exibiram níveis sanguíneos reduzidos de 8-OhDG (um indutor de estresse oxidativo), um aumento significativo na capacidade antioxidante sistêmica e uma diminuição na oxidação de proteínas, alterações que se correlacionaram com a redução da fadiga relacionada ao câncer.

As adaptações fisiológicas induzidas pelo exercício (metabolismo da glicose, biogênese mitocondrial, angiogênese, liberação de citocinas, só para citar algumas) não são confinadas ao músculo esquelético, elas têm implicações sistêmicas de amplo alcance que afetam a saúde do indivíduo. Atualmente, tem se tornado aparente que essas alterações sistêmicas induzidas pelo exercício podem afetar o crescimento tumoral e tem potencial de impactar profundamente no microambiente do tumor e, consequentemente na resposta ao tratamento.

É bem observado que o microambiente tumoral é um sistema caótico e disfuncional, causado em boa parte por uma angiogênese patológica que é caracterizado por vasos tortuosos, com má formação, disfuncionais e permeáveis que contribui para invasão e metástase. Estudos vem demonstrando o papel do exercício na angiogênese tumoral, mostrando que o exercício pode regular positivamente a produção de fatores pró-angiogênicos, aumentando a densidade e a perfusão dos microvasos. O aumento da perfusão dos vasos pode melhorar a entrega da quimioterapia às células-alvo tumorais, bem como permitir que as células natural killer (NK) e as células T se infiltrem melhor nos tumores. Juntamente com a remodelação vascular, os efeitos locais e sistêmicos do exercício podem melhorar a imunidade antitumoral, retardando o crescimento do tumor.

Foto: XTERRA/triathlete.com

Metabolismo celular alterado é um hallmark do câncer. O efeito Warburg (termo em referência a Otto Warburg – Prêmio Nobel em 1931) que é caracterizado por metabolismo glicolítico aeróbico acelerado com consumo elevado de glicose e produção de lactato mesmo na presença de suprimento suficiente de oxigênio, é um fenômeno observado na maioria dos tumores. Apesar de ser inquestionável que o exercício regule o metabolismo intratumoral, como isso afeta o crescimento do tumor e a taxa metastática ainda não é mecanicamente compreendido (inclusive, um campo em plena expansão atualmente). Estudos pré-clínicos sugerem que tumores com alto metabolismo inerente são mais suscetíveis ao estresse energético induzido pelo exercício. O aumento da demanda energética durante o exercício gera déficit de energia celular, que ativa vias produtoras de energia incluindo a indução da sinalização de AMPK (AMP-activated protein kinase) e inibindo vias anabólicas, sendo esses um dos efeitos sugeridos para contribuir para um controle direto do crescimento das células tumorais através do exercício.

Outro ponto importante a ser destacado é de que, a redução da dependência de glicose do tumor e as alterações metabólicas resultantes podem melhorar a eficácia dos agentes citotóxicos. Estudos demonstraram que a inibição farmacológica da glicólise melhorou a eficácia dos agentes antineoplásicos etoposídeo contra o linfoma, da rapamicina contra o neuroblastoma e o tamoxifeno contra o câncer de mama.

Apesar de todos esses avanços na pesquisa em exercício e câncer, ainda são necessários mais estudos para esclarecer como o exercício pode impactar no curso da doença. Uma coisa é certa, pessoas que são mais ativas e se exercitam mais, tem menor risco para o desenvolvimento dessa doença, que geralmente é observado na proporção de atletas (profissionais e amadores) acometidos por essa doença em relação a indivíduos sedentários. Entretanto, o que vem se tornando bastante importante é de que o exercício possa ser uma terapia adjuvante ao tratamento convencional, impactando diretamente no desenvolvimento da doença. O que podemos dizer sobre isso, além dos muitos dados já disponíveis? Talvez, a minha experiência em mais de dez anos de luta contra essa doença possa dizer muito sobre isso. Como disse anteriormente, entre tratamentos e internações (muitas vezes prolongadas, no caso de 2 transplantes) o exercício sempre se fez presente, e hoje posso dizer com toda a certeza que a minha condição física fez com que eu pudesse suportar doses de tratamentos altíssimas (lembrando que um dos problemas no tratamento é falta de adesão). As minhas respostas ao tratamento sempre foram de remissão total da doença, ou seja, eu sempre saí dos tratamentos sem doença residual, curado mesmo. Quanto ao fator psicológico, sair para pedalar entre as sessões de quimioterapias era verdadeiramente incrível. Naquele momento, não importava tempo, cadência, potência, mas sim o desejo de me sentir vivo e forte! Naquele momento, eu vencia a doença e tudo de negativo que ela trazia consigo. Naquele momento, eu sentia a minha vida ser transformada! E posso garantir a vocês, não há riqueza no mundo que compre essa sensação.

Um último conselho, se mantenha ativo! Independente do ciclos e periodizações (para os atletas), faça do exercício um remédio a ser tomado todos os dias, e você verá que o grande benefício desse remédio, além da ausência dos efeitos adversos dos fármacos tradicionais, será a de um bem-estar e qualidade de vida que preencherá sua vida e te manterá forte e confiante para qualquer adversidade que você possa vir a enfrentar.

Prof. Eduardo Figueiredo
Graduado em Educação Física
Especialista em Fisiologia do exercício
Mestrando em Oncologia – PPGO / CPQ – INCA
Professor de ciclismo da equipe Cordella team
Professor da clínica de reabilitação cardíaca MEDSPORT
Personal trainer
@prof.edu_figueiredo

 

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