Qual o ponto em que deixa de ser disciplina e passa a atrapalhar a vida se tornando uma obsessão?
Por Daniela de Oliveira
“Nem tanto ao céu, nem tanto à terra”. Um velho conselho de avós, muitas vezes esquecido por praticantes de esporte. Somos guiados por outras crenças como “no pain, no gain”, ou ordens internas como “ultrapassar nossos limites a cada treino”.
Para dar conta de tamanha demanda é preciso disciplina. A grande pergunta é: qual o ponto em que deixa de ser disciplina e passa a atrapalhar a vida se tornando uma obsessão? Alguns comportamentos rituais são adotados por vários atletas para manter o foco de atenção. Rituais são, inclusive, incentivados por psicólogos do esporte como uma espécie de âncora para que o atleta traga sua atenção para o momento. Uma ferramenta para ajudar no estado de presença. Os rituais passam a ser considerados patológicos quando assumem a característica da compulsão: são realizados para aliviar uma grande tensão, atrapalham as atividades de rotina, interferem nos relacionamentos, causam alterações de humor. E, quando o próprio esporte em si, se torna uma obsessão? Criamos, nos treinos, um ambiente potencialmente perigoso, estimulando nosso corpo a reações rápidas, agressividade, resistência à habituação e um estado sustentado de alerta. O grande triunfo do atleta é apreciar seus momentos de descanso, priorizar suas pausas para sair deste estado extremo. Entretanto, algumas pessoas simplesmente não conseguem parar. Algumas características de personalidade podem contribuir para desenvolver uma compulsão, popularmente conhecido como “vício no esporte”.
Para alguns o esporte não é simplesmente uma prática prazerosa. Transforma-se em uma obrigação diária em que o êxito neste âmbito da vida passa a refletir seu valor enquanto ser humano. Ou seja, se alguém não vai bem como atleta, significa que “não serve para mais nada”, ou “ é um ser humano inútil”. A atividade física passa a controlar a vida.
A linha entre “levar o esporte a sério” e o esporte ser prejudicial à saúde é tênue. Algumas características podem nos dar uma fina medida entre um e outro.
• Priorizar o esporte acima de tudo: quando a atividade passa a ser o mais importante e a vida passa a girar em torno dela, é um sinal de alerta. Quando outras áreas de nossa vida começam a ser prejudicadas, como trabalho e relacionamentos, é mais um sinal de alerta. Muitas pessoas deixam de frequentar ocasiões sociais por causa de treinos, ou prejudicam seus relacionamentos pessoais ocupando todo seu tempo livre com esporte. Por vezes desmarcam reuniões ou não conseguem focar no trabalho. A atividade esportiva se esparrama pela vida.
• Isolamento: à medida que o esporte se torna prioridade, a pessoa começa a se isolar, inclusive de seus companheiros de treino. Qualquer evento social é visto como um empecilho ao desempenho.
• Alterações de humor: quando um treino não pode ser feito, ou não é cumprido “como deveria”, os sentimentos de desvalia, raiva, irritação, dentre outros, aparecem e dão o “tom” para o resto do dia.
• A motivação para a prática de esportes muitas vezes é aliviar uma tensão, uma sensação de vazio ou recuperar o senso de controle. O esporte é visto como um dos únicos recursos para se acalmar.
• Sentimentos de culpa e comportamentos punitivos podem surgir se o resultado de uma prova ou treino não foi como o esperado, ou, se por algum motivo maior, o treino não pôde ser realizado.
• Praticar uma atividade física para aliviar um sofrimento ou para evitar algum sentimento (por exemplo, culpa).
A prática de atividade física é um dos grandes pilares associados à qualidade de vida, ao bem estar físico e mental. Quando começa a se tornar motivo de aflição ou de martírio, devemos repensar o lugar que ocupa em nossas vidas. Somos seres de múltiplas camadas. Definirmo-nos por apenas um aspecto de nossas vidas é simplificar e reduzir a nossa existência nos empobrece. Vivemos com uma única possibilidade tudo ou nada.
Quando o esporte se torna uma obsessão é preciso procurar ajuda. A vida é composta de nossas complexidades. Somos muito mais do que apenas resultados. Aprender a influenciar nossas emoções nos possibilita fazer escolhas que nos aproximam de uma vida autêntica e saudável.
Daniela de Oliveira é psicóloga e ex-nadadora profissional. danideoliveira.com.br e @danielapanisideoliveira