O que os atletas podem ensinar aos psicanalistas?

A arte imita a vida, o esporte imita a arte: o que os atletas podem ensinar aos psicanalistas?

Por Paula Figueira

Desde que comecei a praticar triathlon, há 5 anos, tenho me perguntado como a psicanálise poderia contribuir com as ciências do esporte ou o que os atletas podem ensinar aos analistas. Vejo muitos colegas fazendo conexões com a arte, literatura, música, mas até agora não vi nenhum analista falando sobre esportes. Mas já que para uma analista como eu, que pratico esportes desde que me entendo por gente, construir essa elaboração teórica tem sido uma instigante aventura na produção de um novo conhecimento.

Foi na leitura do livro “9 lições sobre arte e psicanálise”, de Juan David Nasio, que vi pela primeira vez um psicanalista falar sobre esporte. Nasio inclui os esportes junto com as artes, como uma atividade sublimatória. No texto, indaga de onde surge a força irreprimível que leva um atleta a querer triunfar e que impulso irresistível que inflama o olho, a cabeça, o coração e a mão de um artista e faz com que disso surja uma forma inédita de pintura sobre a tela. Ele diz que a resposta de Freud para essa pergunta certamente seria a partir do conceito de sublimação, que pode ser definido como uma defesa contra as pulsões, que são as forças ou tendências agressivas que constituem nossa vida psíquica. A sublimação nasce da excitação do corpo e se descarrega não mais num ato agressivo, mas na criação de algo que satisfaz e apazigua as fortes investidas das pulsões, resultando numa ação frutífera que corresponde a ideais sociais elevados.

Parafraseando Nasio, questiono de onde surge a força irreprimível que leva um atleta a querer triunfar e que impulso é esse que inflama o corpo e a mente de um atleta e faz com que disso resulte na superação de uma lesão ou de um recorde mundial. Podemos afirmar que a sublimação é essa força que incita um atleta a superar-se. Nasio afirma também que a sublimação é uma transmissão. Assim, um feito esportivo pode ser considerado resultante de uma sublimação se desencadear no espectador o mesmo impulso criador que levou o atleta a realizá-lo. Para tanto é necessário que o espectador esteja disposto a se deixar atravessar pelo entusiasmo que emana do feito esportivo. É importante destacar que a sublimação está para todos, mas nem todo o mundo sublima da mesma maneira.

O universo esportivo está repleto de casos interessantes que podemos usar como referência para falar de sublimação, como a história de Tim Don, um dos grandes ícones do triathlon mundial na atualidade. Aos 40 anos tem um currículo esportivo espetacular, com participação em três Jogos Olímpicos, títulos mundiais e hoje é o atual recordista do Ironman. O percurso do Ironman compreende 3.800m de natação, 180km de ciclismo e 42km de corrida, com o tempo limite de 17 horas para finalizar a prova. A maioria dos atletas amadores que cruzam a linha de chegada com um tempo em torno de 11 a 14 horas. Em maio de 2017, no Ironman Florianópolis, ele fez o que era considerado impossível, batendo o recorde mundial com 7h40min23s de prova, tempo que ninguém jamais alcançou até agora.

Todo triatleta sonha em algum dia participar do campeonato mundial de Ironman, que acontece todo ano em meados do mês de outubro na ilha de Kailua-Kona, no Havaí. Em 2017, Tim Don estava no auge da sua performance e tudo o que queria era subir no pódio no Mundial. Porém, às vésperas da competição, foi atropelado durante um treino de ciclismo e quebrou o pescoço. Para a recuperação do acidente, poderia usar um colar cervical ou fazer uma cirurgia, opções que para ele seriam “fim de carreira”.  No entanto, os médicos indicaram uma terceira opção chamada “halo”, um trambolho muito parecido com mecanismo de tortura medieval.

O halo é composto por quatro hastes verticais fixadas ao crânio, com pinos de titânio para sustentar o pescoço. Era a opção mais dolorosa e desconfortável, mas a única que tinha alguma possibilidade dele retornar às competições, mesmo sem muitas garantias. Essa foi a escolha de Tim Don, já que lidar com a dor e o desconforto físico é uma especialidade de atletas desse tipo de modalidade. Uma observação que não posso deixar escapar: HALO, em português, significa auréola e pode ser definido como círculo luminoso que às vezes se nota em volta do Sol e de alguns planetas, devido a certo estado da atmosfera. Além disso, traz também o significado de brilho, prestígio e glória. A escolha de Tim Don não foi à toa. Ele não se reconhecia nesse corpo “parado” que passou a constituí-lo após o acidente. O escritor francês Paul Valéry diz que “a dor física nos põe em oposição com o nosso corpo, que se mostra inteiramente estranho ao que está em nós.” Por isso, Tim Don se recusa a fixidez e a paralisia e decide não se recuar diante do trauma, mas enfrentá-lo no desafio mais estranho e doloroso desafio de sua vida. Ele não queria encerrar a carreira nesse momento, pois mesmo com o recorde de Ironman, acreditava que ainda não tinha atingido sua melhor performance. Tudo o que mais queria era voltar a competir, e não simplesmente voltar a treinar quando retirasse o halo.

Três semanas após o acidente, os estranhos “parafusos a mais” em sua cabeça já se tornaram familiares, as dores diminuíram e conseguia se movimentar melhor, o suficiente para despertar o seu inquietante espírito competitivo.  Viu que poderia acelerar sua recuperação e mesmo com o halo começou a fazer treinos leves de musculação, ciclismo indoor e corrida na esteira. Sabia que não poderia fazer triathlon no nível que gostaria por um bom tempo, mas sempre quis correr uma maratona isolada, pois até então só tinha corrido 42km após os 180km de ciclismo em provas de Ironman. Por isso, apostou na ideia de treinar para a maratona de Boston logo após a retirada do halo, uma forma de criar algum “saber-fazer” com o que restou da sua experiência traumática.

Para se ter uma ideia: num Ironman ele costuma correr os 42km em torno de 2h40min. Numa maratona isolada a previsão seria em torno de 2h45min a 2h50min, o que certamente o faria muito feliz se fizesse isso em Boston, com apenas 12 semanas de treino depois de quase ficar tetraplégico. Quatro meses após o acidente ele retornou aos treinos de corrida. Da cintura para baixo, ele já era o mesmo Tim Don de sempre: movimentação rápida, solta, fluida, com muita leveza e vigor nos pés. Da cintura pra cima ele ainda estava muito travado, apesar de já ter recuperado os movimentos do pescoço. Mesmo assim, sentia que seu corpo já funcionava bem e por isso já treinava natação, ciclismo e corrida por 15 horas semanais, enquanto os outros triatletas profissionais continuavam na rotina de 30h por semana, com muito mais volume e intensidade.

Durante os dois meses com o halo, Tim Don sem dúvidas foi o melhor atleta do mundo na modalidade “recuperação de pescoço quebrado”. A fase sem o halo foi muito mais difícil, pois evidenciou o que ele mais temia que era a perda do seu desempenho após o acidente. No entanto, a maratona de Boston marcou o fim desse ciclo. Ficaria satisfeito com um tempo em torno de três horas, mas qualquer tempo acima disso estaria longe do ideal. Eis que num dia de condições bastante adversas para se estrear numa maratona, com muito frio e chuva, ele fez o inacreditável e concluiu os 42km em incríveis 2h49min.

Em outubro de 2018, um ano após o acidente, ainda conseguiu disputar o Mundial de Ironman no Havaí.  Apesar de ter ficado de fora do pódio ele cruzou a linha de chegada em Kona com o tempo de 8h45min. Em novembro de 2019, ele foi campeão do Patagonman XTRI, considerado uma prova extrema na distância Ironman, por envolver baixas temperaturas a altimetrias bastante elevadas no ciclismo e na corrida, num percurso belo e bastante desafiador em meio a montanhas e paisagens exuberantes.

Um atleta como Tim Don nos desperta não só entusiasmo, mas também muito estranhamento com o modo que ele lida com a dor seja na recuperação da sua lesão, seja durante os treinos e competições. Ele não só supera a si mesmo, mas também supera os limites da ciência e se reinventa ao criar um novo corpo em todos os desafios que decide enfrentar.

Acredito que todo atleta é causado e nos causa pelo indescritível desejo de superar a si mesmo. O próprio Tim Don já deixa isso muito claro logo início do documentário “The man with the halo” , onde ele conta a sua trajetória desde o recorde em Florianópolis até a maratona de Boston após o acidente, onde diz: “é difícil descrever aquele sentimento de quando você está se esforçando ao máximo, toda luta, ambição e euforia em ser o melhor que pode ser e de mostrar isso para o mundo. É isso que me faz continuar.”

Ele foi brilhante em criar uma forma de fazer as pazes com a inquietante estranheza que o habitou durante a recuperação de um acidente que poderia ser um trágico fim de carreira. Nasio diz que toda invenção humana é resultado da sublimação de uma pulsão que se tornou perceptível e sugestiva. Assim, um quadro é uma pulsão que se tornou visível. Uma escultura, uma pulsão palpável. Uma música, uma pulsão audível. Seriam então os feitos esportivos como os de Tim Don obras resultantes da sublimação de pulsões que ganharam um novo corpo?

Paula Figueira é psicanalista, psicóloga do esporte e triatleta amadora. @paulafigueirapsi

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